A poesia é mães das artes
& das manhas em geral: alô poetas
poesia no país do carnaval.
Alô Geral!(Felipe Rodarte/Marcio Menezes/João Pedro Lima/Torquato Neto):
Torquato Neto: o Nosferatu do Asfalto
Falar de Torquato é como se despir de nossas roupas apertadas, de nossas gravatas, jogar fora nossas cascas academicistas, com cheiro de mofo de escritório, e com os pés descalços, pisar solto pelo asfalto quente, sangrante, das ruas. Torquato, nosferatu tropical, faroesteiro da cidade verde, com suas mãos grandes de poeta que parecem querer estrangular o mundo, nos espreita nas esquinas que nunca se encontram, querendo desafinar nosso coro de contentes, nossa boca cheia de dentes, que esperam a novela na hora do jantar.
É respirar um Brasil devorador de restos de culturas, do sacrifício urbano, o de abismos e concretos. O Brasil o qual jogamos na fogueira, dançando ao redor ao som de guitarras como se fossem flautas tupis. O horizonte tropicalista de retomada da antropofagia oswaldiana, o desprendimento pé na estrada beat, de pegar o mundo pronto e não gostar dele. “Vir ou Ver?”. O poeta menino de alma regada à cajuína, de olhar tristeresina, já sabia os convidados para este circo armado na geléia geral dos anos velados.
Em seu roteiro escrito com Capinam para programa de tv “Vida Paixão e Banana no Tropicalismo – 1967-1968” já enumerava o banquete farto de bananas pra sociedade do falso milagre daqueles anos:“Academia Brasileira de Letras, Misses com faixas, (...) Colégios de Aplicação, torcidas uniformizadas (...), deputados e senadores, Ibraim Sued, Nelson Rodrigues, travestis, turistas americanos, circo...”. Capitaneados pelo Velho Guerreiro, a balbúrdia da utopia carnavalesca já caricaturizava o Brasil de cacos de um quebra-cabeça com peças faltando, e sem a imagem que se forma completa, talvez o que justamente caracterize esse país multifacetado.
E no livro “Os Últimos Dias de Paupéria”, podemos perceber o quanto multifacetada é a obra do poeta, que se insere no conjunto daqueles que ouvem as vozes de Ducasse sussurradas no ouvido. Os poetas-escorpiões, que se jogam e passam por este mundo não temendo os descaminhos, da entrega sem rédeas, os poetas do risco, do trapacear da vida e da morte, do brindar-se com os próprios venenos. Era da raça dos que são "a faca e a ferida". Mas o que diferencia Torquato é querer a superação de tudo que é estanque, das pedras com limo que não rolam, captado por sua visão nordestina, ferida, de tupiniquim cidadão planetário, inadaptado à condição rasteira dos homens contínuos de si mesmos.
Antenado como uma parabólica ao mundo, jornalista de uma geração que escrever sobre arte era como fazer arte, fisgava tudo no ar, tudo que estava sendo feito, tudo que estava sendo lançado. Em sua coluna “Geléia Geral”, no jornal Última Hora, além de expor sua prática poética, muitas vezes em forma de verdadeiros manifestos, comentava suplementos literários e fazia sua crítica bem peculiar de música e cinema – principalmente experimentais –, como parte de uma geração que despontava respirando a contra-cultura que parecia tomar conta de todo o planeta.
Ligue o rádio, ponha discos, veja a paisagem, sinta o drama: você pode chamar isso tudo como bem quiser. Há muitos nomes à disposição de quem queira dar nomes ao fogo, no meio do redemoinho, entre os becos da tristíssima cidade, nos sons de um apartamento apertado no meio de apartamentos.
Você pode sofrer, mas não pode deixar de prestar atenção. Enquanto eu estiver atento, nada me acontecerá. Enquanto batiza a fogueira – tempo de espera? Pode ser – o mundo de sempre gira e o fogo rende. O pior de tudo é esperar apenas. O lado de fora é frio. O lado de fora é fogo, igual ao lado de dentro(...).
Em uma mesma coluna, ficamos sabemos dos festivais e shows da época, os discos que estavam sendo lançados, quem participava, quem tocava com quem, os grupos que despontavam, seu fascínio pela arte experimental, simplesmente poesias, o “faça você mesmo”, desabafos, denúncias, notícias de fora, insights sobre cinema Super8, seus projetos para a “Navilouca” – o grande sonho de sua vida que teve uma primeira edição única e que ele não chegou a ver publicada. Ler os textos que escrevia em sua coluna, claro na linguagem para o que acontecia e consciente das mudanças que ocorriam em seu tempo, é fazer um retrato cultural do fim dos 60 e início dos 70.
Desde a letra de Geléia Geral, quando nesta são enumeradas as "relíquias do Brasil" até no estilo de texto jornalístico singular inventado por Torquato Neto, tudo na sua produção pode ser entendido como resultante de procedimentos que exploram a montagem em suas possibilidades estéticas.
Seus textos nos estimulam a uma forma não-conformista de se pensar a arte e a vida e a de não separá-las, num prisma poético amplo de possibilidades: desinocentar nossa visão medíocre cotidiana em meio à repressão, sobretudo, a visão sobre nós mesmos. Mas Torquato – com seu olhar soturno e atormentado de visionário –, também já profetizava o fim do sonho, contemporâneo à morte bela de grandes heróis como Hendrix, Morrison, Joplin, Brian Jones; a sociedade de consumo esvaziando a sensibilidade das artes; o homem se transformando em coisa, mercadoria.
Em uma carta a Helio Oiticica, na época de sua internação no Engenho de Dentro, escreve sobre um encontro com Hendrix, fumando juntos haxixe ao som do álbum branco dos Beatles, e vê a morte estampada em seu rosto. Já no final de sua intensa e curta vida, demonstrava em seus escritos no hospício cada vez mais seu lado sombrio, já descrente de tudo e todos, os esforços em vão, seu afastamento dos outros tropicalistas. Espécie de Artaud incansável pelo poder catártico da palavra.
A poesia se faz presente em todo ato da palavra, que precisa ser subvertida, desenquadrada de suas idéias cristalizadas. Torquato sabia da necessidade de colocar a poesia na prática, nas ruas, no cotidiano da miséria, disfarçada, que desde aqueles anos já mostravam o assassinato das utopias, das corrupções políticas e culturais, da mesmice do apadrinhamento cultural. Já havia pescado muito antes o espírito do sentido multimídia de artista, livre para romper os limites das possibilidades expressivas, explodir as convenções dos cânones e escolas.
O êxtase dionisíaco proporcionado pelo impacto da palavra em Torquato parece querer atingir um status purificador que segue a linha de Artaud, dos poetas que a extrapolavam e a expandiam através de outros códigos, da musica, do cinema, das artes plásticas. Dos poetas que sabiam que vivíamos e morríamos, mas que a morte não põe fim à arte, não a continha em si. Precisa ser canalizada por diversos canais, desejo de esgotá-la em suas possibilidades múltiplas: a imagem drummondiana do anjo torto e, por derivação direta, a eleição do marginal como herói.
A literatura, o labirinto perquiridor da linguagem escrita, o contra-tempo, a literatura é a irmã siamesa do indivíduo. A idade de massas, evidentemente não comporta mais a literatura como uma coisa viva e por isso em nossos dias ela estrebucha e vai morrer (...) o homem moderno não existe como indivíduo, mas como tipo – esses tipos não são tantos quanto todos nós (...). O cenário é agora o único personagem vivo.
Inclusive seu flerte com poesia concreta e sua amizade com a trindade concretista, parece não se limitar simplesmente à forma da palavra, parece querer explorar outros planos, ao contrário do aprisionamento da emoção que aquela tendência impunha ao cenário da poesia. Em cenas do seu curta-metragem “O terror da Vermelha” – rodado em 1972 quando voltou para Teresina a fim de internar para uma desintoxicação –, como na hora em que brinca com a palavra Teresina estampada num ônibus de sua cidade-natal, o poeta focaliza primeiramente “sina” e depois “resina” de “Teresina”, mostrando justamente sua própria sina de poeta à margem, indicando seu destino de vampiro errante, estrangulando a inocência nas ruas agrestes, ao som alucinante de Frank Zappa com imagens da casa do quintal de sua mãe com lençóis pendurados como estandartes. O recurso das palavras-cenário vai ser recorrente em outros momentos de “O terror da Vermelha”.
Possibilidades da arte que comumente passam desapercebidas no olhar hollydiano do cinema industrial, que não deseja o desregramento do sentidos, pela sensibilidade, e sim pela imposição da linguagem de fácil digestão.
Antes de se matar, Torquato descrente de um mundo que se mostrava pequeno demais para a totalidade de sua visão e sua sede, atormentado pelo céu e inferno interior que nos habitam, já antevisionava o marasmo impregnado na juventude daqueles anos de chumbo, o desbunde instalado, a castração, o exílio. A cura pelo veneno, a bebida. A incompreensão e o abandono dos amigos.
Debaixo da tempestade
sou feiticeiro de nascença
atrás desta reticência
tenho o meu corpo cruzado
a morte não é vingança
Na madrugada do dia dez de novembro de 1972, há exatamente 33 anos, Torquato Neto suicidou-se abrindo o gás do banheiro de seu apartamento na Tijuca. Torquato deixou um bilhete, escrito em três folhas de caderno espiral, dedicando o último pensamento a seu filho Thiago, de dois anos: "Vocês aí, peço não sacudirem demais o Thiago. Ele pode acordar".
Um suicidado da sociedade? Ou será que foi apenas por si mesmo, em conseqüência de sua própria loucura, que Torquato abandonou a vida? O limite entre vida e obra é apagado de uma maneira definitiva através do gesto de uma recusa fatal. Gesto que num golpe faz da obra de Torquato Neto uma potência que passa ao ato no mesmo momento em que coloca um fim em toda e qualquer ação. A imagem paradoxal do vampiro urbano, em plena luz do dia, sob os escombros do próprio espelho de seu mito.
(João Pedro Lima, novembro de 2005)
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